Ameaça à Lei de Licitações
O governo propõe abrir mais uma brecha na Lei de Licitações. A ideia, agora, é afrouxar as regras para as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Isso encurtaria o processo e reduziria os preços, segundo alega a ministra do Planejamento, Míriam Belchior. A lei já foi alterada com o pretexto de facilitar a execução de projetos para a Copa do Mundo de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016. Para isso foi criado o Regime Diferenciado de Contratações, aprovado pelo Congresso e contestado no STF pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Segundo um de seus argumentos, o regime enfraquece a concorrência, ao permitir a atribuição do projeto básico e da execução da obra ou serviço ao mesmo contratado.
Detalhes como esse são tecnicamente importantes, mas o dado mais preocupante é de natureza política. Incapaz de operar com um mínimo de eficiência dentro da moldura legal, o governo tenta, seguidamente, encontrar meios de romper as normas em vigor. Rever toda a Lei de Licitações seria muito complicado e envolveria negociações difíceis. Muito mais simples é o caminho das mudanças parciais. Assim se conseguiu estabelecer o regime especial para as obras da Copa. Assim se procura, agora, criar facilidades para a gestão do PAC, lançado em 2007 e com baixo grau de execução até hoje.
O principal obstáculo à realização desse programa é a ineficiência da administração federal. É um problema interno do governo. Atribuir as dificuldades às normas de licitação é distorcer os fatos. Não vem ao caso discutir se essa distorção é intencional e se os objetivos da iniciativa são todos confessáveis. A proposta é inconveniente por si mesma.
Para deixar claro o problema real, pode-se partir de uma informação aparentemente positiva. Foram pagos no primeiro trimestre R$ 8 bilhões para obras do PAC orçamentário - a parte do programa financiada diretamente pelo Tesouro. Foi um recorde, segundo as cifras divulgadas pela organização Contas Abertas, especializada em finanças governamentais. O total desembolsado representou 19,2% do total autorizado para o ano. Em 2011, o valor pago nesse período correspondeu a 13,6%. A média dos anos anteriores ficou em 10,8% da verba orçada para o exercício. O progresso efetivo, no entanto, é muito modesto.
Um exame mais atento dos dados mostra o governo ainda atolado na própria ineficiência. Do valor pago nos três primeiros meses - R$ 7,8 bilhões -, cerca de 97% foram restos a pagar, isto é, recursos comprometidos em exercícios anteriores. A administração federal não consegue pôr em dia a própria agenda de investimentos. Tanto no PAC orçamentário quanto na parte atribuída às estatais a ineficiência gerencial é evidente, sendo o desempenho da Petrobras a exceção positiva. A mesma avaliação é aplicável à maior parte das ações do governo federal em seus vários setores de atuação. Um dos exemplos mais notáveis tem sido o Plano Brasil Maior, formado principalmente por uma coleção de trapalhadas. As dificuldades dos empresários para descobrir como podem usar os benefícios fiscais embutidos no plano são mais uma prova inequívoca da incapacidade gerencial do governo.
O Regime Diferenciado de Contratações é apenas mais uma improvisação de baixa qualidade. Foi concebido para facilitar a vida de um governo pressionado para tirar o atraso na execução das obras da Copa e dos Jogos Olímpicos, porque durante quatro anos praticamente nada se fez para o País cumprir os compromissos assumidos para a realização dos dois eventos. Além disso, só em parte a lentidão do processo de contratação de obras é explicável pela Lei de Licitações.
Sempre é possível aperfeiçoar a lei. Para melhorá-la, o governo deveria identificar claramente as deficiências do texto e ponderar cuidadosamente os prós e contras de cada alteração. Seria preciso, além disso, abrir uma discussão cuidadosa sobre o assunto, com participação tanto de parlamentares quanto de especialistas. O pior caminho é o escolhido pelo governo - o da abertura de brechas.
Fonte: Editorial no jornal O Estado de São Paulo